Isolamento social, game watchability e plataformas de streaming
por Dara Coema
Como você prefere passar seu tempo: assistindo alguém jogar videogame ou jogando você mesmo?
Há algum tempo atrás a resposta a essa pergunta poderia parecer óbvia, mas nos últimos anos essa é uma discussão que se tornou completamente plausível. Para muitos gamers de gerações passadas a prática do assistir quando falamos de jogos não é tão envolvente como o jogar em si e a confusão em relação ao assunto faz todo sentido. Nosso instinto natural é relacionar o apelo dos jogos como mídia com a agência do jogador sobre as narrativas e a interatividade que o produto oferece. Ao se tornar espectador, você perde essa característica e, portanto, perde o apelo dos jogos, certo? ‘
Bom, não é o que diriam 48% dos gamers que consomem vídeos e streams no YouTube. Segundo uma pesquisa de 2017 realizada pela Google em parceria com a Ipsos Connect, essa é a porcentagem de pessoas que dizem passar mais tempo assistindo conteúdo sobre jogos do que jogando. O mesmo estudo também mostra que dois dos cinco canais mais populares do YouTube são sobre games, o que reflete o quão poderoso é o setor dentro da plataforma de vídeos mais famosa do mundo. Vale lembrar que esses dados dizem respeito somente aos números do YouTube, e nós ainda temos outras plataformas como o popular site de streaming Twitch — um spin-off da falecida Justin.tv — que ainda hoje lidera o mercado de game streams, a recente Facebook Gaming (só tem dois aninhos!) que vem crescendo cada vez mais — teve um aumento 210% nas horas assistidas entre dezembro de 2018 e dezembro de 2019 — e a Mixer, plataforma de streaming da Microsoft.¹
Playthroughs, walkthroughs, speedruns, gameplays, game streams… São diversos tipos de produções, nas mais diversas plataformas, consumidas por ainda mais diversos motivos. Afinal, porque assistimos outros jogarem? Bom, você pode estar tentando aprender mais sobre um MMO que está apenas começando a jogar, então seu objetivo ao assistir seria puramente didático. Ou você pode querer apoiar um streamer específico que você gosta muito acompanhando todas suas lives e participando dos chats junto à outras centenas de fãs, o que nos leva à uma hipótese sobre o culto à personalidade e o senso de comunidade na internet. Você pode ainda, sendo mais realista ao cenário econômico brasileiro, simplesmente não ter dinheiro para comprar um determinado console ou jogo e por isso ter que ficar HORAS ASSISTINDO OUTRAS PESSOAS JOGAREM ANIMAL CROSSING NEW HORIZONS ENQUANTO VOCÊ FICA SÓ CHUPANDO O DEDO. Ok, ok, o negócio ficou pessoal demais, desculpa. Ou você pode simplesmente se divertir vendo streamers e youtubers jogando, o que SIM, tem explicação.
O autor Johan Huizinga, historiador e linguista holandês conhecido por seus trabalhos nas áreas da história cultural, teoria da história e da crítica da cultura, aborda algo similar ao se referir ao assistir nos jogos romanos em sua obra Homo Ludens, afirmando que neste caso “o impulso competitivo [passa] do protagonista para o espectador, o qual se limita a assistir às lutas de outros, designados para esse fim.” Essa mesma ideia de se sentir representado no outro é abordada também na neurociência. No artigo da publicação Motherboard chamado “Por que curtimos assistir aos vídeos de react no YouTube?” , que trata da prática do react — onde o espectador assiste uma determinada pessoa reagindo a qualquer tipo de coisa, desde vídeos e músicas, até memes e notícias — Luli Radfahrer, professor de Comunicação Digital da ECA-USP, explica o fenômeno através de um aspecto da neurociência chamado neurônio-espelho. “Quando certa pessoa vê um vídeo de alguém, de alguma forma, reagindo, seja para o bem ou o mal, a pessoa se coloca nessa situação.” No caso este é o mesmo fenômeno que acontece na pornografia ou no voyeurismo: um espectador sente prazer em apenas assistir outros, que não ele, fazendo sexo. O que faz de nós que assistimos gameplays e streams online, grandes voyeurs dos games.
Independente do porquê, a questão é que há mais motivos para e formas de consumir jogos do que pode imaginar nossa vã filosofia. Mas o propósito de toooda essa explicação foi para finalmente nos levar à questão de que esse cenário particular que nos faz discutir a assistibilidade dos jogos está ainda mais evidente durante nossa situação atual. Como essa série se chama “O jogar em tempos de quarentena”, imagino que todos que estão lendo já estejam de certa forma cientes do que estou falando. A atual emergência mundial e o subsequente isolamento social causado pela pandemia do covid-19 têm se mostrado um ambiente particularmente propício para ocrescimento das práticas do assistir no universo dos games. Aqueles que tem a possibilidade de ficar em quarentena, passando a maior parte do tempo e muitas vezes trabalhando de casa, naturalmente se encontram com uma quantidade maior de tempo livre em mãos. Nesse tempo você poderia fazer um curso online de inteligência emocional e talvez começar aquela tão prometida rotina de exercícios… Oooou você poderia assistir uma partidinha de Fortnite na Twitch.
Essa parece ser a preferência de muitos, já que durante a quarentena a transmissão de jogos em plataformas de streaming cresceu e muito. Segundo uma reportagem do The New York Times, só nos Estados Unidos o número de espectadores da Twitch cresceu 31% no período de 8 à 22 de março. É claro que nós sabemos que a Twitch não transmite apenas conteúdo gamer, mas vamos combinar que é a maioria esmagadora, certo? De acordo com a mesma reportagem, o número de horas assistidas ao dia por consumidores americanos também passou de 33 milhões para 43 milhões em apenas duas semanas! *PUFF! MIND BLOWN* Mas esse crescimento não está somente limitado aos Estados Unidos. A matéria online da revista Exame “Durante quarentena, transmissão ao vivo de jogos cresce” menciona também uma mudança no cenário brasileiro, onde streamers já notam uma diferença na audiência de suas lives. O streamer e youtuber Alexandre “Gaules”, por exemplo, que transmite suas lives de CS:GO na Twitch, bateu recorde de audiência durante um jogo do campeonato ESL Pro League de CS:GO, chegando à marca de 182 mil espectadores simultâneos durante sua narração da partida entre os times Mibr e Furia.
A mesma matéria também fala de Gustavo “Baiano” que por muitos anos foi jogador profissional de League of Legends em diversos times, tendo jogado como support no Santos até o ano passado. Hoje streamer na Twitch, Baiano organizou e transmitiu em março o Cbolão, campeonato beneficente com a participação de astros do cenário brasileiro de LoL, que teve como objetivo arrecadar fundos para auxiliar no combate ao coronavírus. A iniciativa arrecadou a quantia de 125 mil reais e chegou a acumular mais de 105.000 espectadores simultâneos na stream ao vivo. Esses e muitos outros casos tem nos mostrado o enorme impacto do coronavírus e da quarentena no entretenimento e também na economia, nesse caso um impacto positivo. É muito estranho falar sobre como determinado mercado está crescendo com uma tragédia? É sim. Mas esse não deixa de ser um fenômeno da Comunicação que precisamos analisar e discutir como investigadores da área de game studies e também como consumidores. Peace out!
¹ Atualização: Em 22/06/2020 a Microsoft anunciou o fim da Mixer, sua plataforma de streaming. A Mixer funcionará oficialmente até o dia 22 de julho de 2020, mas a empresa já firmou uma parceria com o Facebook, oferecendo uma transição dos streamers que possuem contato com a Microsoft para o Facebook Gaming. Apesar da oferta, os streamers ainda estão estão livres para negociação com outras plataformas depois do fim dos contratos.